Olhos de Paixão

Talvez não lhe possa chamar presente, mas fez-se sentir como tal e sem querer, não sei se foi o melhor presente, mas foi seguramente o mais surpreendente e mais especial. Não se distinguiu por ser caro, pelo contrário, espantou pela sua enorme simplicidade. Não vinha faustosamente embrulhado em papel colorido com fitas douradas, mas senti-o envolvido numa grande sinceridade. Ao ser dado não teve a anunciá-lo nenhum momento de suspense próprio das ocasiões importantes, mas ainda assim conseguiu ser grandioso. Como qualquer boa surpresa, apanhou-me de sobressalto, deixou-me perplexa, sem saber o que dizer, o que fazer e o que pensar.
À mesa no dia de Natal em amena conversa com a minha avó materna e a minha mãe, a minha avó segura-me a mão e com olhos de quem elogia e de quem constata diz: “Filha, tens olhos de Paixão!”. Fiquei por segundos naquele limbo dos momentos cheios de beleza, em que, por exemplo, ouvimos um dos elogios mais bonitos da nossa vida e ficamos sem reacção. Não sei se foi por todo o significado que esta expressão encerra, se por a nunca ter ouvido, se foi por ser tão despretensiosamente poética, se por ser completamente inesperada, a verdade é que com apenas 3 palavras a minha avó encheu-me o coração. E percebendo que eu não tinha alcançado ainda a amplitude total da expressão explicou que todos os Paixão (família que faz parte da minha matriz e da qual ela ainda herdou o nome) tinham olhos bonitos que pareciam ter fogo. Enquanto a minha avó me dizia isto eu observava os seus olhos, não vi a chama clara que ela reconheceu nos meus, mas, entre o olhar cansado e as rugas de 86 anos já passados, eu pude identificar uma chama pequena e antiga que encerra os segredos de uma vida.