Wednesday, September 26, 2007

A Vergonha

Hoje, quando saí do edíficio onde trabalho, primeiro amaldiçoei o facto de já ser tarde, de seguida o trânsito que já estava parado e, por fim, para completar decidi fazer o caminho até à paragem a analisar o meu recibo de vencimento. De olhos pregados à folha, a tentar não tropeçar ou ser atropelada, fazia contas de cabeça e olhava incrédula para a exurbitância que descontei para a Segurança Social. E enquanto fazia isto, completamente alheada do mundo e em "piloto automático" até à paragem, interrompe-me uma voz que diz "Desculpe minha senhora".
Talvez porque vinha distraída virei-me para trás, sorri e disse "boa Tarde", só quando a pessoa me diz "muito obrigada por ter parado e me ter dito boa tarde" eu dei-me conta que tinha sorrido e cumprimentado um estranho. À minha frente estava um homem de meia idade, magro, com um ar distinto que não condizia com a roupa que trazia, suja de tanto ser usada. À medida que ia falando comecei-me a aperceber que talvez fosse pedir dinheiro, mas falava num tom que se fazia sentir sincero, ora olhos em mim de súplica, ora olhos no chão de humilhação, repetindo "é vergonhoso, que vergonha tão grande ter que lhe dizer isto,..."
Percebia o senhor, da forma mais educada e correcta, a esforçar-se e, simultaneamente, a sentir-se bloqueado pela humilhação pessoal de, por fim, dizer "queria-lhe pedir uma esmola".
Senti-me sem chão, impelida a agir contra tudo o que penso sobre estas situações, a não a ser capaz de alinhar com o meu cepticismo e incredulidade, a abandonar a minha racionalidade e a ser-me completamente impossível de ficar indiferente ao homem destruído que estava à minha frente. Avisei-o que as moedas que tinha eram pequenas, que não iam servir de muita ajuda e ele agradece com uma emoção tal que me deixa sem reacção, ao ponto de me despedir dele a dizer "adeus e obrigada".
Não sei porque é que agradeci, mas isto fez-me pensar deixou-me num lugar entre o triste e o mal, porque no dia em que eu recebo o meu ordenado, rogo pragas ao meu trabalho e falo mal do meu salário sou interpelada por uma pessoa que não tem nada. Talvez seja um sinal ou as coincidências existam, talvez o senhor seja um bom actor ou a necessidade dele uma mentira, mas eu percebi a humilhação que pode ser pedir uma esmola e o quanto estava a ser ingrata com a minha vida, naquele momento que precedeu o nosso encontro. Eu dei-lhe uma pequena esmola, mas ele deu-me esta grande certeza: a ingratidão tem tanto de vergonha como tem pedir esmola.

6 comments:

Anonymous said...

parabéns pelo blog, um admirador anónimo!

Rita said...

;) Obrigada !!**

Anaipa said...

Realmente... os ordenados é que são uma vergonha!

Anonymous said...

lindo

Rita said...

=) senti uma enorme vontade de escrever este post, mas questionei de devia, se iria ser apreciado... estou contente que tenham gostado.

Putz said...

Ainda bem que o fizeste, porque retrataste um pouco o quotidiano da nossa sociedade. Quanto à vergonha, é apenas um sentimento que atinge quem tem escrúpulos e princípios,enquanto os "espertos" a relativizam para conseguir os seus objectivos...ou acabam por esquecer o significado da palavra. O 25 de Abril deu-nos liberdade, mas de uma forma geral,ainda não compreendemos o conceito.